segunda-feira, 13 de abril de 2020

Uso dos modificadores no gênero conto

Bruxas não existem
Moacyr Scliar
Quando eu era garoto, acreditava em bruxas, mulheres malvadas que passavam o tempo todo maquinando coisas perversas. Os meus amigos também acreditavam nisso. A prova para nós era uma mulher muito velha, uma solteirona que morava numa casinha caindo aos pedaços no fim de nossa rua. Seu nome era Ana Custódio, mas nós só a chamávamos de "bruxa". 
Era muito feia, ela; gorda, enorme, os cabelos pareciam palha, o nariz era comprido, ela tinha uma enorme verruga no queixo. E estava sempre falando sozinha. Nunca tínhamos entrado na casa, mas tínhamos a certeza de que, se fizéssemos isso, nós a encontraríamos preparando venenos num grande caldeirão. 
Nossa diversão predileta era incomodá-la. Volta e meia invadíamos o pequeno pátio para dali roubar frutas e quando, por acaso, a velha saía à rua para fazer compras no pequeno armazém ali perto, corríamos atrás dela gritando "bruxa, bruxa!". 
Um dia encontramos, no meio da rua, um bode morto. A quem pertencera esse animal nós não sabíamos, mas logo descobrimos o que fazer com ele: jogá-lo na casa da bruxa. O que seria fácil. Ao contrário do que sempre acontecia, naquela manhã, e talvez por esquecimento, ela deixara aberta a janela da frente. Sob comando do João Pedro, que era o nosso líder, levantamos o bicho, que era grande e pesava bastante, e com muito esforço nós o levamos até a janela. Tentamos empurrá-lo para dentro, mas aí os chifres ficaram presos na cortina. 
- Vamos logo - gritava o João Pedro -, antes que a bruxa apareça. E ela apareceu. No momento exato em que, finalmente, conseguíamos introduzir o bode pela janela, a porta se abriu e ali estava ela, a bruxa, empunhando um cabo de vassoura. Rindo, saímos correndo. Eu, gordinho, era o último. 
E então aconteceu. De repente, enfiei o pé num buraco e caí. De imediato senti uma dor terrível na perna e não tive dúvida: estava quebrada. Gemendo, tentei me levantar, mas não consegui. E a bruxa, caminhando com dificuldade, mas com o cabo de vassoura na mão, aproximava-se. Àquela altura a turma estava longe, ninguém poderia me ajudar. E a mulher sem dúvida descarregaria em mim sua fúria. 
Em um momento, ela estava junto a mim, transtornada de raiva. Mas aí viu a minha perna, e instantaneamente mudou. Agachou-se junto a mim e começou a examiná-la com uma habilidade surpreendente. 
- Está quebrada - disse por fim. - Mas podemos dar um jeito. Não se preocupe, sei fazer isso. Fui enfermeira muitos anos, trabalhei em hospital. Confie em mim. 
Dividiu o cabo de vassoura em três pedaços e com eles, e com seu cinto de pano, improvisou uma tala, imobilizando-me a perna. A dor diminuiu muito e, amparado nela, fui até minha casa. "Chame uma ambulância", disse a mulher à minha mãe. Sorriu. 
Tudo ficou bem. Levaram-me para o hospital, o médico engessou minha perna e em poucas semanas eu estava recuperado. Desde então, deixei de acreditar em bruxas. E tornei-me grande amigo de uma senhora que morava em minha rua, uma senhora muito boa que se chamava Ana Custódio.


Para saber mais sobre o autor Moacyr Scliar, acesse:  


ATIVIDADES


1. O narrador do conto "Bruxas não existem" é também um personagem dessa narrativa? Justifique.  

2)  O enredo de um conto está relacionado ao desenrolar dos fatos, às ações vivenciadas pelos personagens.
O que move o enredo, normalmente, é um fato que instaura um problema que quebra o estado de “normalidade”; um conflito, algo que precisa ser solucionado pelos personagens, em um espaço.   
A partir daí, criam-se expectativas e chega-se a um desfecho (final).

a) A decisão dos garotos de jogar um animal morto na casa da vizinha gerou que conflito vivenciado pelos personagens?

b) Em que espaços ocorrem as ações deste conto?

c) O desfecho é surpreendente? Explique.

3) Releia os dois primeiros parágrafos do texto e responda ao que se pede: 

     a) Qual a definição de "bruxa" apresentada pelo narrador? Destaque duas palavras utilizadas, no primeiro parágrafo, para caracterizar  "bruxa"? 

b) Ao relacionar a imagem de uma bruxa a uma pessoa real, o narrador se baseava, principalmente, em características físicas ou psicológicas? Destaque palavras e expressões utilizadas para caracterizar a vizinha como "bruxa". 

c) Qual afirmação do segundo parágrafo do texto demonstra que a associação feita pelo narrador e seus amigos era baseada na imaginação e não em fatos comprovados?

4) Observe os trechos: 

- “e quando, por acaso, a velha saía à rua para fazer compras no pequeno armazém ali perto, corríamos atrás dela gritando "bruxa, bruxa!". 

- "Desde então, deixei de acreditar em bruxas e tornei-me grande amigo de uma senhora que morava em minha rua, uma senhora muito boa, que se chamava Ana Custódio.” 

a) No início do texto o narrador usa as palavras "velha" e "bruxa" para se referir à personagem e, no final, "senhora". Por que houve essa mudança?

b) Assinale os itens que indicam outras mudanças na forma como o narrador se refere à vizinha, no desfecho da narrativa

    (  ) a vizinha passa a ser chamada pelo seu nome, "Ana Custódio", e não pela caracterização "bruxa".
(  ) quebra-se a imagem de "velha má" e a vizinha passa a ser apresentada como "uma senhora muito boa".
(   ) O narrador deixa de nomear a vizinha como "bruxa", mas continua acreditando que as bruxas existem.  

5) A vizinha foi pré-julgada pelos garotos, os quais criaram uma imagem dela que não correspondia à realidade. 

    a) Essas situações de preconceito ocorrem com frequência no nosso dia a dia? Exemplifique.  

      b) Na sua opinião, o que poderia contribuir para que os garotos tivessem uma visão menos preconceituosa em relação à vizinha? 




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